domingo, 26 de novembro de 2017

No Brasil é assim


 
25 de Novembro de 2017, 7h00
O editor de arte Helton Gomes, 36, cresceu na periferia de São Paulo, perdeu a mãe e o irmão ainda criança e viu amigos se envolverem com o crime. Começou a trabalhar aos 14 anos, terminou a faculdade e arrumou um bom emprego. Hoje é o responsável pela diagramação da revista de uma das maiores companhias aéreas do país,  mora num bairro de classe média, gosta de  camisas floridas estilosas e pilota uma motocicleta Vulcan 900, cor-de-laranja metalizada.
Helton é casado com uma mulher branca, sua “parceira na luta diária contra o preconceito”, e os dois têm uma filha, também branca,  de um ano e meio, e outro encomendado, na barriga da mãe. “Essa reação de espanto é muito comum nas pessoas. De olhar pra minha filha, depois pra mim, depois pra ela de novo, depois pra mim… Fico triste pra cacete, mas acabei criando um bloqueio”, conta.
Num país que insiste em negar o racismo, ele fala sobre as várias formas que esse fantasma onipresente assume em sua vida:
“Demorei pra pensar sobre racismo porque, em casa, meu pai nunca se aceitou como negro, então isso não era assunto. Além disso, eu morava em Mauá – uma cidade dormitório, na periferia de São Paulo – e lá tem gente de toda a cor. Então só comecei a pensar mais sobre isso na época da faculdade, quando entrei na capoeira. Durante as rodas, meu mestre fazia leituras e falava da importância e da força da cultura africana.
Nessa época, cheguei a comentar com meu pai, numa brincadeira ou coisa assim, que ele era negão que nem eu, mas ele não aceitou. Disse que não tinha nada de negão ali. Depois disso, por algum tempo, imaginei que ele realmente não quisesse ser negro. Hoje já acho que talvez aquilo tivesse a ver com o fato de ele ter vivido numa época em que as coisas eram ainda piores. Que, no fim, foi o jeito de esconder esse passado ou de fugir dessa luta. Ou talvez só esteja cansado mesmo.
Por tudo isso, eu entendo que meu pai não queira falar sobre racismo, não queira assumir que somos negros.
Mas acho também que essa vergonha do passado não é só dele. Eu só sei da minha família até meu avô e a minha avó, por exemplo. Dos bisavós, sei só o primeiro nome. Porque, em algum momento, começaram a pegar sobrenomes de outros ramos da família. Acho que isso também tem a ver com tudo que aconteceu nesse passado, porque minha bisavó devia ser escrava. Então talvez seja vergonha de ter um escravo na família. Por tudo isso, eu entendo que meu pai não queira falar sobre racismo, não queira assumir que somos negros.

Estevão Ribeiro
O que às vezes é meio absurdo. Lembro de quando tomei meu primeiro enquadro. Tinha uns 14 anos e voltei pra casa achando que ia apanhar. Afinal, para mim, a polícia só ia te parar se você estivesse fazendo alguma coisa errada, e meu pai não ia acreditar que eu estava de boa, indo na papelaria pra fazer uma fantasia do Michael Jackson.
Mas quando contei, me segurando pra não chorar, ele riu pra cacete. Depois falou que iam me parar outras vezes. Mas nunca falou que iam me parar pra cacete porque eu era negro. Falou como se fosse normal. E que eu não podia nunca correr. Se eu visse a polícia, tinha de ficar parado. Se estivesse jogando bola e passasse a polícia, tinha de parar de correr. Então acho que isso de ele não dizer que é negro tem a ver com isso também. Com o peso de falar para um filho que ele tem de parar de jogar bola quando vê a polícia.
Quando eu era adolescente, eu andava de boné e calça big, não tava nem aí, então era muito parado. E até entendo que a polícia estava fazendo o trabalho dela, mas, com o tempo, você começa a se perguntar: por que ninguém está revistando o moleque do outro lado da rua, que tem a mesma cara de bobo que eu, mas não é negro?
De repente eu olhei pra trás e vi a viatura que parecia um tigre atrás da presa.
Essa diferença na abordagem ficou mais clara pra mim depois de um enquadro que tomei na época da faculdade. Eu estava de carona com duas amigas brancas, quando cruzamos uma Blazer da PM. A gente continuou conversando normalmente: eu, no lugar do meio do banco traseiro; as duas, na frente.
De repente eu olhei pra trás e vi a viatura que parecia um tigre atrás da presa. Até achei que o cara ia bater na gente, mas ele emparelhou, colocou meio corpo pra fora e gritou: “Para, para, para!”. Minha amiga obedeceu, o PM mandou abaixar o vidro e começou a fazer uma série de perguntas: onde a gente estava indo, de quem era o carro, qual era a placa.
Depois que ela respondeu tudo, ele perguntou: ‘Tá, e quem é esse cara aí atrás?’. Só aí eu comecei a perceber que ele tinha parado a gente só por minha causa, não pelo carro ou qualquer outra coisa. Isso ficou ainda mais claro logo em seguida, porque o policial que estava no banco de trás da viatura tinha um farolete apontado pra mim o tempo inteiro. Em nenhum momento ele tirou de mim pra revistar o resto do carro. Aí, quando eu me virei pra ver por que ele não estava mexendo, percebi o brilho do cano da arma apontado pra mim.
E, de novo, eu entendo. Um cara no banco de trás, com duas mulheres, de noite, numa rua da periferia, levanta suspeita. Mas e se eu fosse como você? E se eu fosse branco? Será que eles iriam parar? E se fossem duas meninas negras na frente? Tenho certeza que ele não ia deixar a gente ir embora do jeito que fez. Que ia mandar todo mundo descer do carro pra checar os antecedentes. Porque, pra quem é negro na periferia não tem essa de mulher ou homem. Todo mundo é suspeito igual.
Depois que ele liberou a gente, minha amiga falou pra mim que aquilo tinha sido muito truculento, que não tinha sido legal. Eu até argumentei que eles estavam fazendo o trabalho deles, mas ela repetiu que não, que não tinha sido legal. Ela, branca, falando isso pra mim (risos).
“Vai, vai, vai, neguinho, encosta aí, caralho”.
Hoje as coisas mudaram um pouco. Eu levo bem menos enquadro, e quando levo, são menos truculentos. Não porque a polícia mudou ou porque o racismo diminuiu, mas porque eu circulo em outros lugares e de outra maneira.
Quando meu salário ficou um pouco mais razoável, passei a me vestir melhor e reparei que, com isso, andava mais tranquilo na rua. Se sou parado, também já converso de outro jeito, não me refiro aos policiais como senhor, por exemplo. A não ser que o cara mande, mas mesmo assim vai ser um “senhor” diferente, menos submisso.
Além disso, eu circulo menos pela periferia, o que muda tudo. Na periferia é “vai, vai, vai, neguinho, encosta aí, caralho”. Na Zona Oeste, quando eu fui parado numa blitz da Lei Seca, o policial me chamou de senhor e pediu para eu soprar o bafômetro ‘por favor’.
Estevão Ribeiro
Agora, eu continuo andando sempre com tudo certo e nunca saio sem documento de casa. Outro dia fui num caraoquê, e os caras pediam RG na entrada. Aí peguei a carteira e percebi que estava sem. Cara, eu fiquei desesperado. Os meus amigos falavam: ‘Calma, você vai conseguir entrar’. E eu respondia: ‘Cara, olha a minha cor. Você acha mesmo que posso andar tranquilo pela rua sem documentos?’
Mas, enfim. Eu gosto de me vestir do jeito que eu me visto, gosto de me arrumar, me sinto bem, mas é também um jeito de tomar menos enquadro, de as pessoas não sentirem medo de mim na rua. Eu gosto de boné aba reta, por exemplo. Mas, se eu tiver de vir a pé, à noite, eu não vou usar porque tenho medo de tomar enquadro e não gosto de ver todo mundo mudar de calçada quando me vê na esquina.
Isso ainda é comum. Outro dia mesmo, do lado de casa, na frente do batalhão da PM, uma senhora me olhou, se assustou e atravessou a rua. Aí eu fico pensando, quem, em sã consciência, vai assaltar alguém em frente a um batalhão da polícia (risos)?
“Senhora, pode ficar tranquila, eu não vou te assaltar. Estou indo pro meu trabalho, sou designer.”
Nessas horas, a minha vontade é atravessar antes e ficar olhando como se estivesse com medo. Aí, quando ela vier me perguntar por que eu atravessei, eu vou explicar que vi uma senhora branca na rua e fiquei com medo. Às vezes, eu faço umas coisas assim. Quando alguém começa a me olhar, a segurar a bolsa, tento andar mais rápido, segurar minha mochila como se estivesse com medo.  Só que as pessoas não entendem e acabam ficando com mais medo ainda.
Quando esse tipo de coisa acontece, sinto uma mistura de coisas. Tristeza, raiva, vontade de falar: ‘Senhora, pode ficar tranquila, eu não vou te assaltar. Estou indo pro meu trabalho, sou designer. Olha aqui a revista que eu faço, você pode levar pra casa e, quando pegar o próximo avião, lembra de mim. Não precisa lembrar de mim só porque achou que eu ia roubar sua bolsa’.
Eu sei que muita gente vê isso como mania de perseguição. E eu vejo mesmo o mundo por essa ótica, estou sempre pensando se aquelas coisas aconteceram porque eu sou negro. Uma vez uma mulher atravessou a rua, eu achei que era por minha causa, e ela entrou no carro estacionado do outro lado. Mas, em geral, a gente percebe a intenção.
Isso quando o racismo não é completamente escancarado.
Um exemplo desse preconceito escancarado. Eu sempre fui um cara bobo nos relacionamentos, sempre quis fazer tudo certo, conhecer a família etc. Mas tinha uma namorada que não queria me apresentar os pais dela de jeito nenhum. Eu insisti, insisti, e quando eles finalmente me receberam para um almoço foi uma catástrofe. Na hora, eles já ficaram dando uma alfinetadas, dizendo que iam muito à igreja, que não gostavam de macumba, mas eu sou meio lento pra essas coisas e não entendi por que ficavam falando de macumba e de igreja.
Logo depois desse encontro, minha namorada se afastou e, passados alguns dias, terminou comigo, por telefone. A gente ficou um fim de semana brigados, eu perguntando o que estava acontecendo, ela fugindo da resposta. Até que finalmente caiu a ficha e eu perguntei se tudo aquilo era por eu ser negro. Ela ficou em silêncio, eu insisti mais, e ela finalmente falou: ‘É… Minha mãe disse que você é macumbeiro, que é bandido e criminoso’. A gente continuou junto, mas a partir daí foi um tormento de ligações, de recados na caixa de mensagem, do pai dela me mandando e-mails com ameaças.
Hoje, felizmente, isso ficou para trás. A família da minha esposa me aceita e é super carinhosa comigo. Mas o problema continua em outros lugares. Porque eu sou um pai negro de filha branca. E quando ando com ela na rua, vou à padaria, sinto o olhar das pessoas de um jeito que não é legal. Quando a minha esposa está junto, todo mundo chega pra brincar com minha filha, fazer gracinhas, falar como ela é fofa.
Essa reação de espanto é muito comum nas pessoas. De olhar pra minha filha, depois pra mim, depois pra ela de novo, depois pra mim… 
Já quando estou sozinho com ela, ninguém fala, ninguém se aproxima. Sendo que ela continua fofa do mesmo jeito (risos). Lembro de uma vez, quando fui na padaria com ela e com o Jobim, que, por sinal, é um cachorro preto (risos). Antes de entrar, eu travei o carrinho e fui amarrar o cachorro. Enquanto isso, um casal mais idoso saiu e ficou brincando com minha filha, perguntando ‘Onde está sua mãe?’. Eles já tinham se afastado um pouco quando eu acabei de amarrar o Jobim e peguei o carrinho com a minha filha. Nessa hora, o casal, que estava pegando o carro, entrou em choque. Pra mim, ficou claro que eles estavam pensando se chamavam ou não a polícia.
Essa reação de espanto é muito comum nas pessoas. De olhar pra minha filha, depois pra mim, depois pra ela de novo, depois pra mim… Fico triste pra cacete, mas acabei criando um bloqueio. Presto atenção nela, na nossa relação, nas coisas, no meu celular, mas não olho mais as pessoas em volta.
Isso ajuda, mas não resolve. Eu tenho medo de ir sozinho ao shopping com a minha filha, por exemplo. Porque toda a criança que sai sozinha com o pai, em algum momento, vai começar a gritar, chamando ‘mamãe’. E eu fico pensando comigo: imagina eu, negro, em um shopping, com uma menina branca chorando e gritando ‘mamãe!’. Ah, leva o documento. Tudo bem, mas e até mostrar o documento?
E eu só devo satisfações se a polícia aparecer. Eu não vou mostrar documento ou falar o nome da minha filha pra um estranho. Não tenho obrigação. E aí… Meu… Tem um monte de gente que não cometeu crime nenhum e foi linchado até a morte. Tem um vídeo de um professor de história negro que teve de dar uma aula pra não ser linchado, porque achavam que ele tinha roubado um carro.
Por outro lado, eu não vou de deixar de fazer as coisas com ela por causa disso. Então eu tenho um combinado com minha esposa. Quando eu saio, o celular dela tem de estar do lado, na orelha. Porque, se der uma merda, ela vai ser a mãe branca que vai me salvar.
O problema é que a coisa toda vai além da violência física. Tem o assédio, o trauma que isso pode causar na minha filha. Porque hoje eu não quero que ela saiba que isso existe. Eu sei que, cedo ou tarde, um amiguinho da escola vai falar: “Seu pai é preto, por que você é branca?”. Mas quero evitar o máximo de trauma na vida dela.
E o mais irônico é que, por tudo isso, eu às vezes fico meio aliviado por ela ser branca. Eu não quero que ela passe tudo o que eu passei, que eu passo, que eu vejo outros negros passando. Mas é um alívio que me deixa muito mal. Agora, a gente está esperando um segundo filho. Eu queria muito que ele fosse neguinho, mas, ao mesmo tempo, fico pensando nos perrengues que ele vai passar e, sinceramente, não quero isso pra ele.”
Em depoimento a Tomás Chiaverini.

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