Afroperspectividade
Em primeiro lugar quero aqui expressar
agradecimentos ao portal Geledés – Instituto da Mulher Negra, pelo pioneirismo. É um portal para se
indignar, para se crescer como gente. Em segundo lugar, agradecer pela pronta
resposta, nos autorizando a replicar seu conteúdo fantástico e negro. Obrigado,
vai melhorar e muito meu trabalho. Em terceiro lugar, agradecer ainda o Dr.
Renato Noguera e sua dignidade e sabedoria. E ouso agradecer ainda seus pais,
que o educaram com tanta firmeza e autoconhecimento. Parabéns.
Meu comentário no Geledés: Nossa, que banho
espiritual, pessoal, moral e mental de inteligência, sabedoria, novas
possibilidades e esperança. Lamento ter conhecido somente agora Renato. A
cultura africana, seus filósofos e pensadores são realmente uma nova abordagem
de tudo que aprendemos até aqui. Lamento no meu tempo de faculdade não ter o
acesso a estas informações e ter fundamentado minha vida nas premissas
exclusivamente ocidental. Estou maravilhado com a argumentação brilhante, nova,
espetacular. Nem tenho palavras, mesmo que quisesse. Mas sei que é uma
esperança num mundo inclusivo, diverso, mais iluminado. Abraços de coração e
coragem a este professor especial e este
filosofo com abordagens realmente inovadoras. E a este portal, Geledés, parabéns.
Agora compartilhado aqui a entrevista.
O original http://www.geledes.org.br/afroperspectividade-por-uma-filosofia-que-descoloniza/#gs.7852c95d8ee445f19a9623704996b427
DIRETO DO GELEDÉS
Entrevista com o doutor em filosofia e professor da UFRRJ, Renato Noguera.
Hoje iniciamos uma série de entrevistas
com intelectuais e militantes da luta negra no Brasil. Nosso primeiro
entrevistado é Renato Noguera, filósofo e professor da UFRRJ, que fala sobre o
surgimento de uma tendência na filosofia brasileira chamada Afroperspectividade.
Renato e outros pesquisadores tentam formular conceitos recorrendo às tradições
indígena, africana e afro-brasileira. Se Nietzsche buscou inspiração nas
figuras europeias clássicas de Apolo e Dionísio para suas formulações sobre a
arte moderna, Renato Noguera e outros pesquisadores recorrem a figuras como a
Mãe-de-santo e a conceitos como o de drible. O tripé referencial desta
empreitada vem de Abdias do Nascimento, Viveiros de Castro e Molefi Asante. A
proliferação conceitual de Deleuze dá o exemplo, segundo Renato, a ser
superado. Nesta entrevista, falamos também sobre o conceito de epistemicídio
(de Suely Carneiro), sobre as filosofias africanas – a anterior à grega e a
contemporânea – e sobre como jovens negros em contextos violentos podem se descolonizar
através da Filosofia. Renato ainda critica a ideia de mestiçagem e faz um
balanço da aplicação das leis 10.639 e 11.645/08 que preveem o ensino de
histórias e culturas indígenas, africanas e afro-brasileiras em nossas escolas.
Há um pensamento negro e crítico ganhando espaço nas universidades brasileiras.
Renato Noguera e outros pesquisadores do Afroperspectividade são uma de suas
frentes mais interessantes no campo filosófico.
“Numa sociedade racista que apresenta
dados alarmantes de violência urbana em que as principais vítimas são jovens
negras e negros, filosofar pode ajudar a repensar o cenário político e social.
Mas, insisto, eles devem estudar uma Filosofia que seja marginal e
antidogmática. Uma Filosofia que pense o racismo, uma Filosofia que trate da
violência, uma Filosofia que pense o Brasil, uma Filosofia enredada no nosso
território cultural, uma Filosofia que está porvir e que, talvez, possa estar
em semente no pluriverso filosófico afroperspectivista.”
RN: Renato Noguera
TA: Tomaz Amorim (entrevistador)
TA: Renato, você é professor de Filosofia na UFRRJ.
Como foi sua trajetória acadêmica, da escola até a posição de professor
universitário? Por que a Filosofia?
RN: Em resumo, estudei no Colégio Pedro
II e lá, fazendo orientação vocacional aos 13 anos, recebi como “diagnóstico”
Filosofia ou Ciências Sociais. Depois pensei em estudar Medicina, Direito ou
Letras, mas tinha em mim algumas questões que eram nitidamente filosóficas.
Depois de ter ficado na lista de espera para Direito na UERJ, escolhi Filosofia
na UFRJ. Eu me lembro que desde a infância vivia me perguntando pelo sentido da
vida, ficava comparando o infinito do céu com a finitude humana. Enfim, dos 18
aos 21 anos fiz o bacharelado em Filosofia, aos 22 anos conclui a licenciatura
e entrei no Mestrado em Filosofia na UERJ, sob orientação do professor Gerd
Bornheim. Depois de dois semestres decidi mudar, prestei outra prova de seleção
e acabei indo para a UFSCar, onde cursei o mestrado de 1996 a 29 de fevereiro
2000 (data de defesa da dissertação). No mestrado pude estudar sob orientação
do grande Bento Prado Jr. Na época, o mestrado durava quatro anos, toda minha
turma usou igualmente o prazo, nós fazíamos as disciplinas em três ou quatro
semestres e ficávamos pesquisando e escrevendo pelo mesmo período. Depois do
mestrado, voltei a morar no Rio de Janeiro e entrei no doutorado em 2001 na
UFRJ, onde o defendi em 31 de março de 2006 com apoio do mesmo orientador da
minha monografia, o generoso Mário Guerreiro. Eu estudei a Filosofia de
Schopenhauer e participei da fundação do Grupo de Trabalho (GT) Schopenhauer na
Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF) em 2004. Na tese de
doutorado, articulei as Filosofias de Platão, Schopenhauer e Deleuze para
propor uma alternativa schopenhaueriana para uma formulação feita por Platão. A
Filosofia de Deleuze trouxe a estratégia de criação de conceitos. Durante
11 anos fui professor da Educação Básica, trabalhei no Ensino Fundamental, no
Ensino Médio e no Ensino Superior, paralelamente, dei aula em várias escolas
privadas, tais como a Escola Parque. Trabalhei na Universidade Estácio de Sá,
fui professor substituto da UERJ, da UFRJ e da rede pública estadual
fluminense. Entre 2005 e 2006 cheguei a ter 27 turmas por semana. No ano de
2008 fui aprovado em concurso público para a Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRRJ).
TA: Da graduação ao doutorado você se dedicou ao
estudo da obra de Schopenhauer, um dos mais importantes filósofos de língua
alemã do século XIX. Hoje você é conhecido, principalmente, pelo esforço em
produzir uma Filosofia a partir de temas e pensadores africanos. Nesta
transição, você acha que houve um rompimento entre os temas ou há uma
continuidade na sua produção?
RN: Não sei se foi um rompimento. Eu
estudei Schopenhauer por bastante tempo, praticamente de 1991 até 2006, mas,
paralelamente, tive outra formação. Tive o privilégio de ter uma formação
familiar e política que levou-me para o ativismo negro desde cedo. Por isso, eu
estudava, paralelamente, o pensamento africano. Eu sabia que nos anos 1990 e no
início dos 2000 seria difícil colocar esse assunto no mundo acadêmico
filosófico. O professor Mário Guerreiro me disse sabiamente: termine o
doutorado e você poderá pesquisar isso. Foi o que fiz.
TA: Você reivindica uma origem africana à
Filosofia, que teria vindo do Egito para a Grécia. Quais são os indícios
históricos desta afirmação? Quem quiser se aprofundar nesta questão deve buscar
quais referências?
RN: Eu trabalho com a noção de que a
Filosofia é pluriversal; não faço coro com a leitura hegemônica de que
filosofar seja universal e tenha sido uma invenção grega. Neste sentido, não
reivindico que os africanos inventaram a Filosofia. Eu advogo que o Egito,
desde 2780 antes da Era Comum, tem uma produção filosófica e possuía escolas
de rekhet, termo que, segundo o egiptólogo e filósofo
Theóphile Obenga, significa “Filosofia”. Não há dúvida de que Platão, Pitágoras
e Tales de Mileto, dentre outros gregos, passaram algum tempo no Antigo Egito.
Diversas fontes convergem para a tese de que Pitágoras (570-496 A.E.C) foi o
primeiro a usar o termo “Filosofia” depois de retornar do Egito. Diógenes de
Laércio e Cícero são fontes importantes dessa perspectiva bastante conhecida.
Há um discurso crítico que atribuiria aos gregos uma espécie de plágio da
Filosofia egípcia. Eu não defendo isso, tampouco a ausência de influência. É
óbvio que todas as culturas são dinâmicas. Eu não defendo que os egípcios
inventaram a Filosofia, o que eu digo é mais simples: os textos egípcios são
filosóficos e mais antigos do que os gregos. Ou seja, os registros filosóficos
africanos são anteriores aos ocidentais. Não estou preocupado com primazia, mas
com a legitimidade filosófica africana na Antiguidade. Eu sou contra a recusa desse
material por puro dogmatismo, por uma postura que, não encontro outra palavra,
tem sido profundamente antifilosófica por parte de colegas com boa formação na
área. Eu não digo que os africanos inventaram a Filosofia por dois motivos.
Primeiro: amanhã ou depois podemos encontrar algum texto mais antigo do que os
egípcios com cerca de mais de 2500 anos antes da Era Comum, isto é, de
aproximadamente 4500 anos. Segundo: penso que é um falso problema apontar qual
povo inventou a Filosofia, qual povo lavrou sua certidão de nascimento. Seria o
mesmo que procurar o povo que inventou a Arquitetura. Penso que todos os povos
tinham suas próprias construções. Faz mais sentido apontar as diferenças.
Assim, o que soa estranho é reduzir toda diversidade a apenas uma escola. Eu
tenho pensado desse modo. As nossas pesquisas são baseadas em diversas fontes,
ainda pouco examinadas, que confirmam que os textos africanos são anteriores
aos ocidentais. Os egípcios começaram a filosofar antes dos gregos. Além disso,
há o fato de que o Egito antigo era uma sociedade negra, o que foi, conforme
Martin Bernal e Cheikh Anta Diop, falsificado por conta do racismo antinegro
que não aceitaria facilmente que uma sociedade muito avançada tecnologicamente
naquele momento histórico pudesse ser negra. Ainda hoje encontramos
representações brancas do Antigo Egito. Sem dúvida, minhas afirmações em torno
da ideia de que existia uma produção filosófica anterior aos gregos recebe uma
vasta série de objeções. O elenco é vasto. Mas para aprofundar o debate eu
sempre indico o exame dos trabalhos de George James com Legado roubado (Stolen
Legacy), passando pelas obras de Cheikh Diop, Theóphile Obenga, Molefi
Asante, até A Filosofia antes dos gregos, de José Nunes
Carreira.
TA: A Filosofia trabalhou durante muitos séculos
com a ideia de universal. No século XX, principalmente, surgiram as Filosofias
da diferença e uma produção teórica impulsionada por grupos historicamente
oprimidos e por suas questões e reivindicações. É possível entender estas formulações
específicas sob o pano de fundo do universal ou elas estariam justamente
denunciando a falsidade deste universal?
RN: Penso que as Filosofias da
diferença são muito importantes nessa denúncia, mas concordo com o filósofo
porto-riquenho Maldonado-Torres que diz que: “os filósofos e os professores de
Filosofia tendem a afirmar as suas raízes numa região espiritual
invariavelmente descrita em termos geopolíticos: a Europa”. Apesar da enorme
compreensão, percebo ainda uma perspectiva, por assim dizer, “conservadora”. O
que não significa que eu não dialogue muito com essa abordagem, reconhecendo os
seus limites.
TA: Qual a importância da Filosofia produzida hoje
no continente africano? Qual sua relação com o pensamento africano na diáspora?
RN: Existem muitos expoentes na
Filosofia africana contemporânea, posso citar alguns. Achille Mbembe tem uma
obra muito interessante chamada Crítica da razão negra, um belo trabalho
de Filosofia política em que ele problematiza o conceito de “negro” e apresenta
um risco trazido pelo neoliberalismo e pela crise da Europa como centro
político mundial. Mbembe diz algo como “os riscos sistemáticos aos quais os
escravos negros foram expostos durante o primeiro capitalismo constituem agora,
se não a norma, pelo menos o quinhão de todas as humanidades subalternas”. O
trabalho do filósofo sul-africano Mogobe Ramose questiona o conceito de
universalidade, substituindo-o pelo de pluriversalidade. Ramose explica como os
conflitos geopolíticos entre europeus e africanos foram responsáveis pela
invisibilidade sistemática do pensamento filosófico africano. Ora, esse
problema tem sido debatido no contexto da afrodiáspora de diversos modos. O
filósofo afro-americano Charles Mills disse algo muito interessante, mais ou
menos assim, “nas Ciências Humanas, a Filosofia é a área mais branca”. No
Brasil, Sueli Carneiro trouxe a ideia de epistemicídio. É preciso citar outros
nomes que têm pesquisado o assunto como Wanderson Flor Nascimento da
Universidade de Brasília (UnB), Eduardo David Oliveira da Universidade Federal
da Bahia (UFBA), Emanoel Soares da Universidade Federal do Recôncavo Baiano
(UFRB), além de estudantes de Programas de Pós-Graduação no Paraná como Roberto
Jardim e Thiago Dantas, que lançou o livro Descolonização Curricular: A
Filosofia Africana no Ensino Médio (2015). No Rio de Janeiro, um grupo
de estudantes de pós-graduação, professores da educação básica e um professor
da UERJ construíram um projeto que transformou-se no livroSambo, logo penso:
afroperspectivas filosóficas para pensar o samba (2015), organizado
por Wallace Lopes com participação de Marcelo Rangel, professor da Universidade
Federal de Outro Preto (UFOP), Sylvia Arcuri, Eduardo Barbosa, Felipe Siqueira,
Filipi Gradim, Guilherme Celestino e Marcelo Moraes, professor da UERJ. Esse
grupo tem feito um belo trabalho filosofando através do samba e usando o
repertório cultural negro, africano, afro-brasileiro, ameríndio e indígena.
TA: A tradição oral parece fundamental nas diversas
culturas africanas. Quais os desafios em transportar esta tradição para a
narrativa e Filosofia escritas?
RN: O pluriverso cultural africano é
vasto. Conforme afirma Diop, existe algo em comum entre os povos africanos do
mesmo modo que nas culturas ocidentais pode-se identificar alguns elementos
razoavelmente constantes. Penso que existe muito desconhecimento sobre os povos
africanos. O livro Etno-História do Império Mali de José Lampréia
pode se juntar ao arsenal de trabalhos organizados pelo historiador africano
Joseph Kizerbo e de tradicionalistas como Hampâte Bá para elucidar que existiam
sociedades como o Império Mali, entre os séculos VIII e XVII. A historiografia
africana aponta que no século XIV existiam 150 escolas e uma universidade na
cidade de Tombuctu, com um vasto acervo em suas bibliotecas. Abdel Kader
Haidara tem feito um belo trabalho tentando salvar a vasta documentação que
grupos fundamentalistas querem destruir. Ora, faço esse comentário para
explicar que existem registros escritos e orais no continente africano. Eu
percebo que pouco se fala a respeito do material escrito dos séculos XIV, XV e
XVI. Sem contar o vasto material egípcio de 2780 até 330 antes da Era Comum,
conforme catalogado por Théophile Obenga. Afinal, mesmo diante das tentativas
de falsificação histórica, o Egito Antigo não pode ser embranquecido diante de
todas as evidências que Cheikh Anta Diop nos deixou em seus trabalhos. Faço
essa digressão para mostrar que, além de material oral, existe muito material
escrito que, no entanto, é pouquíssimo conhecido. Pois bem, em relação ao
esforço de transpor o “texto” oral para o registro escrito, penso que a
oralitura resolve esse aparente problema, transformando o que parecia um
obstáculo intransponível numa equação solúvel, desde que os devidos protocolos
sejam usados. Pio Zirimu, um incrível linguista ugandense, e uma dupla nascida
no Quênia, o escritor e professor de literatura comparada Ngũgĩ Wa Thiong’o e a
professora de arte Micere Mugo, explicam que a oralitura é a teoria da
composição oral, um modo de catalogar o repertório de registros orais. Não se
trata de oralidade, mas de “técnicas” do campo da linguística que criam um
acervo oral. Ou seja, a tradição oral pode ser preservada através dessa
abordagem. Vale a pena ler o artigo Oralidad y oratura de Juan José
Ferrer a esse respeito para compreender melhor o tema. A oralitura é a
alternativa para que o conhecimento filosófico antigo registrado oralmente
possa ser acessível do mesmo modo que os registros escritos.
TA: Em 2003 foi implantada a lei 10.639, que prevê
o ensino de História e Cultura Afro-brasileiras nas escolas. Por que o estado
brasileiro demorou tanto para incluir a história dos ancestrais de mais da
metade da população brasileira nas escolas? Passados doze anos, quais foram os
avanços da lei e de sua implantação? O que ainda falta? Quais as possibilidades
de implantação da lei na disciplina de Filosofia?
RN: Esse tema é objeto de muitas
pesquisas. A Lei 10.639/03 recebeu em 2008 o acréscimo da Lei 11.645/08 que
inclui o ensino de história e culturas indígenas. A regulamentação da alteração
do Artigo 26 A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional tem pelo menos
três documentos fundamentais: 1º) Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana de 2004; 2º) Orientação e Ação para Educação das
Relações Étnico-Raciais de 2006; 3º) Plano Nacional de Implementação das
Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígenas de
2008. Existem muitos trabalhos que trazem um belo panorama a respeito do
cenário de implementação dos conteúdos obrigatórios africanos, afro-brasileiros
e indígenas no currículo do ensino fundamental e do ensino médio em todas as
disciplinas. Um bom balanço tem sido feito pelos Núcleos de Estudos
Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabis) que integram oficialmente as Instituições
Federais de Ensino (IFES), além de existirem também em diversas universidades
privadas e públicas. É difícil discorrer sobre isso sem fazer uma monografia.
De qualquer modo, existem avanços e resistências. No caso da disciplina
Filosofia, posso fazer um resumo porque tenho dedicado parte de meu tempo de
pesquisa em investigações a esse respeito, incluindo a pesquisa que coordeno
com apoio da Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro (FAPERJ) intitulada Filosofando com sotaques africanos e
indígenas, na primeira versão no período de julho de 2014 até junho de
2016. A maior dificuldade no campo da Filosofia está no desconhecimento da
produção fora do circuito ocidental. Eu acredito que o livro Ensino de
Filosofia e a lei 10.639 que foi publicado pela Pallas em parceria com
a Biblioteca Nacional pode ajudar bastante a dirimir dúvidas. Penso que o
primeiro passo é uma cuidadosa leitura da documentação que regulamenta o Artigo
26 A da LDB. O segundo passo: descolonização do pensamento, do currículo e das
práticas educativas.
TA: Em uma entrevista recente à revista Ensaios
Filosóficos você falou em “racismo epistemológico”. O que é isto e como
vencê-lo?
RN: O racismo epistêmico ou
epistemológico é uma das dimensões mais perniciosas da discriminação
étnico-racial negativa. Em linhas gerais, significa a recusa em reconhecer que
a produção de conhecimento de algumas pessoas seja válida por duas razões: 1º)
Porque não são brancas; 2º) Porque as pesquisas e resultados da produção de
conhecimento envolvem repertório e cânones que não são ocidentais. Penso que a
disputa para derrotar, ainda que parcialmente, o racismo epistemológico está no
esforço por diversificar as leituras. Combater a injustiça cognitiva começa por
deixarmos de privilegiar os modelos epistemológicos ocidentais. E, por fim,
realizar uma comparação dos modelos de conhecimento, do repertório, criando
condições para a polirracionalidade. Minha base para romper com o racismo
epistêmico está nas leituras do filósofo Dismas Masolo. É preciso analisar o
objeto de conhecimento por ângulos diferentes, mas também por meio de modelos
de racionalidade diversos. Isto certamente servirá para enriquecer nosso acervo
cognitivo.
TA: A Universidade Federal do Maranhão acabou de
anunciar a criação de um curso de graduação em “Estudos Africanos e
Afro-Brasileiros”. NEABs, Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, têm sido criados
em diversas universidades em todo o Brasil. O surgimento destes espaços mostra
o começo de uma mudança na presença negra nas universidades?
RN: Sem dúvida. Penso que temos um
processo de franca expansão da produção e ocupação acadêmica. O que também pode
ser percebido através das reações de grupos mais reacionários que não querem
negociar o espaço público de produção de conhecimento.
TA: Os movimentos negros no Brasil têm reivindicado
o conceito de genocídio para descrever o número alarmante de negras e negros
que perdem a vida no Brasil por conta de ações diretas do estado ou por sua
negligência (aborto mal realizado, assassinato pela polícia ou em guerra de
facções, vício em drogas, má alimentação, ausência de serviços púbicos de
saúde, etc.). A filósofa Sueli Carneiro desenvolve o conceito de epistemicídio,
que seria o extermínio constante do conhecimento de povos não-brancos
produzidos através da história e ainda hoje. Você acha que há uma relação entre
estes dois tipos de extermínio?
RN: Sem dúvida. O que está em jogo não
deixa de ser uma disputa pela versão única da História, da Filosofia, dos
modelos e práticas políticas frente à diversidade de perspectivas. A denúncia
feita por Sueli Carneiro é magistral, considero o seu trabalho uma das
referências mais importantes da área no Brasil. Por exemplo, quando falamos em
culinária as pesquisas apontam que a atividade de cozinhar é um território
feminino. Em certa medida, na esfera privada no Brasil as mulheres cozinham
mais do que os homens. No Brasil escravocrata, as mulheres negras escravizadas
protagonizaram os serviços culinários. Mas a alta gastronomia e o papel
de chef de cozinha parece ter um elenco majoritariamente
branco e masculino. Tudo isso está relacionado ao epistemicídio, ao genocídio.
A performance na área da gastronomia inclui a filiação étnico-racial. Os dados
e o ranking de melhores chefs mostra que o gênero é masculino, a cor/raça é
branca e o sotaque francês. Óbvio que não estou dizendo que homens brancos não
podem ser chefs maravilhosos. O que o exemplo mostra é que o epistemicídio
dificulta a “escuta” do discurso gastronômico das mulheres negras, já que os
homens brancos são naturalmente mais empoderados na disputa.
TA: Você propõe uma Filosofia afroperspectivista. O
que é isto? Quais as origens teóricas e políticas deste conceito? Existem
outros pensadores hoje no Brasil e no mundo dedicados ao seu desenvolvimento?
Quais são até agora seus principais trabalhos?
RN: Por Filosofia afroperspectivista ou
Afroperspectividade defino uma linha ou abordagem filosófica pluralista que
reconhece a existência de várias perspectivas, sua base é demarcada por
repertórios africanos, afrodiaspóricos, indígenas e ameríndios. O que denominamos
de Filosofia afroperspectivista é uma maneira de abordar as questões que passa
por três referências: 1ª) Afrocentricidade; 2ª) Perspectivismo ameríndio; 3ª)
Quilombismo. Alguns aspectos da formulação intelectual feita por Molefi Asante
articuladas com certas questões suscitadas pela etnologia amazônica de Eduardo
Viveiros de Castro com a formulação política do quilombismo de Abdias do
Nascimento são as fontes para a Filosofia afroperspectivista. Vou repetir o que
escrevi no capítulo Sambando para não sambar: afroperspectivas
filosóficas sobra a musicidade do samba e a origem da Filosofia. A
Filosofia afroperspectivista reúne alguns dos seguintes elementos:
·
Afroperspectividade define a Filosofia
como uma coreografia do pensamento.
·
A Filosofia afroperspectivista define o
pensamento como movimento de ideias corporificadas, porque só é possível pensar
através do corpo. Este, por sua vez, usa drible e coreografia como elementos
que produzem conceitos e argumentam.
·
Os conceitos afroperspectivistas são
construídos a partir de movimentos de coreografia de personagens conceituais
melanodérmicos. Neste sentido, os conceitos são escritos com os pés, com as
mãos e com cabeça ao mesmo tempo.
·
A Filosofia afroperspectivista define a
comunidade/sociedade nos termos da cosmopolítica bantu: comunidade é formada
pelas pessoas que estão presentes (vivas), pelas que estão para nascer
(gerações futuras/futuridade) e pelas que já morreram
(ancestrais/ancestralidade).
·
A Filosofia afroperspectivista é
policêntrica, percebe, identifica e defende a existência de várias
centricidades e de muitas perspectivas.
·
A Filosofia afroperspectivista não toma
o prefixo “afro” somente como uma qualidade continental; estamos diante de um
quesito existencial, político, estético e que nada tem de essencialista ou
metafísico.
·
A Filosofia afroperspectivista usa
a roda como método, um modelo de inspiração das rodas de
samba, candomblé, jongo e capoeira que serve para colocar as mais variadas
perspectivas na roda antes de uma alternativa ser alcançada. A roda é uma
metodologia afroperspectivista.
·
Afroperspectividade é devedora da
Filosofia ubuntu de Mogobe Ramose.
·
Afroperspectividade define competição
como cooperação, isto é, competir [significa petere (esforçar-se,
buscar) cum (juntos)], localizar alternativas que são as
melhores num dado contexto, mas, não são únicas, tampouco permanentes e devem
atender toda a comunidade.
·
Afroperspectividade é devedora do Nguzo
Saba formulado por Maulana Karenga, isto é, se baseia nos sete
princípios éticos que ajudam a organizar e orientar a vida. A saber: Umoja
(unidade): empenhar-se pela comunidade; Kujichagulia (autodeterminação):
definir a nós mesmos e falar por nós; Ujima (trabalho e responsabilidade
coletivos): construir e unir a comunidade, perceber como nossos os problemas
dos outros e resolvê-los em conjunto; Ujamaa (economia cooperativa):
interdependência financeira, recursos compartilhados; Nia (propósito):
transformar em vocação coletiva a construção e o desenvolvimento da comunidade
de modo harmônico; Kuumba (criatividade): trabalhar para que a comunidade se
torne mais bela do que quando foi herdada; Irani (fé): acreditar em nossas(os)
mestres.
·
Afroperspectividade é devedora das
reflexões e inflexões filosóficas de Sobonfu Somé, definindo o amor como um projeto
espiritual e comunitário que serve para manter a sanidade individual e deve
contar com o apoio de uma comunidade para ser preservado.
·
Afroperspectividade define o tempo
dentro do itan [verso]iorubá que diz: “Bara matou um pássaro
ontem com a pedra que arremessou hoje”. O tempo não é evolutivo, tampouco se
contrai ou pode ser tomado como um círculo ou uma linha reta; mas, de modo
simples, diz que o passado é definido pelo presente e o futuro é um conjunto de
encruzilhadas, isto é, destinos (odu).
·
Afroperspectividade permanece em
aberto, sempre apta a incluir perspectivas que usem o conceito de odara como
crivo de validade de um argumento, entendendo odara como bom,
na língua ioruba, uma espécie de bálsamo de revitalização existencial.
Em relação às pessoas que filosofam com
algum sotaque afroperspectivista, posso dizer que estão reunidas em Sambo,
logo penso. Eu não quero falar por ninguém, nem sou representante especial
dessa abordagem filosófica, penso que sou, apenas, academicamente mais antigo
do que o resto do grupo. No livro Sambo, logo penso: afroperspectivas
filosóficas para pensar o samba(2015) organizado por Wallace Lopes, numa
coordenação conjunta que fiz com Sylvia Arcuri e Marcelo Moraes, estão reunidas
as pessoas que fazem esse exercício afroperspectivista de modo formal ou
informal, Marcelo Rangel, Eduardo Barbosa, Felipe Siqueira, Filipi Gradim,
Guilherme Celestino. No projeto Filosofando com sotaques africanos e
indígenas, tenho algumas parcerias: o Prof. Rogério Seixas da
Universidade de Barra Mansa, Filipe Ceppas da UFRJ, Wanderson Nascimento da
UFBA e Wanderely Silva da UFRRJ, estes são colegas que mesmo não se professando
afroperspectivamente apoiam e são pesquisadores associados do projeto. Em
relação às principais obras: penso que estão porvir, mas Ensino de
Filosofia e a Lei 10. 639 (2014)foi o primeiro livro em que confessei
esse desejo intelectual de filosofar com sotaques africanos, indígenas,
performances femininas, sambando, jogando bola, com carimbó e com um repertório
suburbano, enfim, lançando mão das minhas referências culturais.
TA: Qual o papel das mulheres na produção negra de
conhecimento no cenário brasileiro? A figura da negra ainda se resume ao papel
tradicional de mãe ou a Filosofia afroperspectivista aponta outros espaços
possíveis para ela?
RN: Grande interrogação. Penso que o
lugar das mulheres só pode ser de protagonismo. Atualmente tenho orientado
mulheres em cursos de pós-graduação e buscado apoiar suas iniciativas. Na
Filosofia afroperspectivista, estamos cada vez mais pensando em amplificar e
fazer circular com mais intensidade as performances femininas. Por exemplo, em
um artigo sobre a genealogia do drible mencionei personagens conceituais
melanodérmicas da Filosofia afroperspectivista. Nós estamos investindo em
estudos a respeito da personagem da Pomba-Gira, por exemplo. Além disso, a
pensadora burquinense Sobonfu Somé é uma das nossas maiores referências quando
se trata de falar de relacionamentos afetivos e conjugalidades.
TA: A mãe de santo, o jongueiro, o vagabundo,
orixás, ubuntu, denegrir, vadiagem, drible, mandinga, enegrecimento, roda,
cabeça feita, corpo fechado, estas são algumas imagens e figuras ligadas ao
universo negro que você transforma em conceitos filosóficos. No conceito de
drible, por exemplo, você faz um interessante resgate histórico do drible no
futebol e busca aplicá-lo à tradição acadêmica europeia, exigindo que o
pensamento pense também com o corpo. Traduzir tipos históricos e imagens tradicionais
em conceitos filosóficos é o procedimento principal da Filosofia
afroperspectivista?
RN: É um dos procedimentos. Um dos
modos de atuar é trazer o nosso repertório cultural. A maioria das pessoas que
usam a afroperspectividade tem sólida formação nas rodas de samba, nos
terreiros de candomblé e umbanda, pajelança, xamanismo, nas rodas de capoeira,
algumas são jogadoras de futebol e/ou estudiosas de esquemas táticos. Nesse
sentido, se o filósofo alemão Adorno usou Ulisses para fazer uma leitura da Modernidade,
se Nietzsche falou de Apolo e Dioniso, nós usamos outras personagens: Exu,
Pomba-Gira, Zé Malandro, Zumbi dos Palmares, Ogum, Oxóssi, Tupi, Iara, dentre
outras.
TA: O filósofo francês Gilles Deleuze é uma
referência importante nos seus escritos. É possível trabalhar com escritores
europeus em uma Filosofia afroperspectivista? Há limites e dificuldades nesta
relação?
RN: A resposta é sim para os dois
casos. Ou seja, apesar de ser viável trabalhar com autores europeus, existem
limites. Isto está explícito em uma defesa que o próprio Deleuze faz ao lado do
psicanalista Félix Guattari em O que é Filosofia?: “Se a Filosofia
tem uma origem grega, como é certo dizê-lo, é porque a cidade, ao contrário dos
impérios ou dos estados, inventa o agôn como regra de uma sociedade de
‘amigos’, a comunidade dos homens livres enquanto rivais (cidadãos)”. Por isso,
ainda que Deleuze seja muito importante para os meus escritos, reconheço
limites sérios. Como eu digo sempre, na esteira do filósofo Maldonado-Torres, os
filósofos europeus têm essa mania colonial. Sem dúvida, Deleuze é um dos
filósofos que mais tem nos ajudado em nossas insurreições. Mas como desejamos
criar aldeias e quilombos filosóficos, Deleuze só ajuda a destruir os velhos
castelos ocidentais da Filosofia. Para construir a aldeia quilombista
precisamos de pessoas que filosofam com samba.
TA: Qual o papel da mestiçagem, ideia fundamental
na história da formação racial brasileira, no seu pensamento?
RN: Eu não reivindico a categoria de
mestiçagem em nenhum momento. Não se trata de uma dificuldade, mas de um termo
muito equívoco, uma ideia que traz mais dificuldades e confusões do que
alternativas políticas. Eu identifico um grave problema. O termo “raça” pode
ser usado com vários sentidos, destaco dois: sinônimo de espécie ou alusão ao
caráter social e histórico que diferencia grupos humanos pelo fenótipo. Ora, os
sentidos são trocados e como diz o ditado “não se deve confundir alhos com
bugalhos”. Tecnicamente, uma pessoa com mãe austríaca branca e pai norueguês
branco é tão mestiça quanto alguém que tem um pai nigeriano da etnia iorubá com
uma mãe sueca de pele alva. Minha leitura percebe que o conceito mestiço só
faria pleno sentido em casos de centauros, uma mistura de humanos com cavalos,
ou ainda, se um ser extraterrestre procriasse com uma pessoa da nossa espécie.
Dessa união (extraterrestre com terrestre) nasceria um ser mestiço. Minha
experiência política e meus investimentos intelectuais trazem um pensamento
diferente desse. Nós somos da mesma raça (no sentido de espécie biológica), mas
isso não quer dizer que não exista raça num sentido social e histórico, ou
seja, populações que podem ser diferenciadas por características
étnico-raciais, isto é, pelo fenótipo. Mas a existência de mestiços pressuporia
diferenças de natureza entre as “raças”, o que não é o caso. Eu exemplifico, os
jogadores de futebol Daniel Alves e Kaká são “igualmente” mestiços. Porque
provavelmente ambos têm pessoas brancas, negras (pretas e pardas) e indígenas
em suas ancestralidades. Mas foi Daniel Alves que reclamou dos xingamentos de
torcidas que além de jogar bananas, o chamaram de macaco diversas vezes.
Conforme minhas pesquisas superficiais, Kaká nunca foi chamado de “macaco”
quando jogava na Europa. Ora, Kaká é branco e Daniel Alves é pardo, isto é,
negro. (O sistema classificatório étnico-racial brasileiro é bem simples: o
IBGE informa cinco categorias de cor/raça: amarela, branca, indígena, parda e
preta. É importante notar que a categoria negra não é sinônimo de preta, mas a
soma desta com “parda”. Ou seja, pardos + pretos = negros). Por isso, Neymar
viveu alguns episódios de discriminação racial em campo, algo impensado para
Zico ou Kaká na mesma Europa. Penso que a ideia de mestiçagem cria mais
dificuldades e confusões do que efetivas alternativas ao racismo e para a
compreensão da sociedade brasileira. A suposição da existência da “mestiçagem”
tem sido munição para as teorias puristas. Afinal, para haver
mestiços é preciso que existam puros. Supor a mestiçagem parece uma crítica de
tom antirracista, mas acaba por revitalizar o racismo que “gostaria” de
combater. A ideia de pureza fez e continua fazendo muitos estragos políticos,
penso que devemos riscar a ideia de “mestiçagem” dos nossos dicionários
político e intelectual, levando a ideia de “pureza” junto. Afinal, não existem
puros, tampouco impuros ou misturados. Concordo com Carlos Moore, só existem
fenótipos. Por isso, a mestiçagem não faz parte do meu trabalho. Não acredito e
nem vejo como a “mestiçagem” poderia ajudar a resolver qualquer tensão racial.
TA: Por fim, Renato. Em um contexto de opressão e
violência, como é o de muitos jovens negras e negros no Brasil, por que eles
deveriam estudar Filosofia ?
RN: A Filosofia pode ser um exercício
de descolonização. Mas também pode ser de colonização e recolonização. Nós
defendemos uma Filosofia que descoloniza, uma Filosofia que declare
independência e autonomia sem dogmas. Numa sociedade racista que apresenta dados
alarmantes de violência urbana em que as principais vítimas são jovens negras e
negros, filosofar pode ajudar a repensar o cenário político e social. Mas,
insisto, eles devem estudar uma Filosofia que seja marginal e antidogmática.
Uma Filosofia que pense o racismo, uma Filosofia que trate da violência, uma
Filosofia que pense o Brasil, uma Filosofia enredada no nosso território
cultural, uma Filosofia que está porvir e que, talvez, possa estar em semente
no pluriverso filosófico afroperspectivista.
TA: Muito obrigado pela entrevista, Renato.
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