Por que você está sonhando tanto durante a quarentena
Sidarta Ribeiro, o neurocientista brasileiro que há anos se dedica ao
tema, explica para a VICE.
Fugir do ataque de gatos zumbis
que querem morder e contaminar as pessoas, presenciar o próprio cachorro se
suicidando, estar grávida dentro de um barco em movimento, ver um amigo morto
voltar à vida. Tem muita gente acordando de sonhos
intranquilos durante o distanciamento
social provocado pela epidemia do novo coronavírus no
Brasil e no mundo. Quando perguntei a algumas pessoas quais tipos de sonho elas
têm tido, recebi relatos malucos – nada que fuja completamente do cenário
caótico que nossos sonhos noturnos nos propiciam, você pode pensar, e é
verdade. Mas um elemento em comum presente em vários desses depoimentos me
chamou a atenção: a vida. Ou melhor, a morte.
"O sonho que mais me marcou
nesse isolamento tem a ver com um amigo meu que [na vida real] foi morto por
traficantes. Na época, ele tinha 20 anos", me contou Lucas Gomes, 22,
estudante de história. "No sonho, ele estava vivo e queria voltar a
estudar. Eu tentava ajudá-lo, mas, no final, eu recebia a mensagem de um
'promotor' que dizia que eu não sabia quem meu amigo era, como se ele não
merecesse perdão." Perguntei pro Lucas como ele mesmo lia esse sonho.
"Com esse rolê todo de pandemia, acredito que isso voltou pra superfície.
A morte é um assunto diário agora, então pode ter algo a ver", disse.
Achar um lugar seguro em meio a
gatos zumbis que mordiam as pessoas e transmitiam o coronavírus era a missão de
Ana Henkel, 32, assistente administrativa, num sonho recente. "Eu,
desesperada, tentei assustar o gato, mas ele me atacou e me mordeu. Peguei um
travesseiro e sufoquei ele. Depois, lembro de ficar preocupada se ia virar um
zumbi", relembrou.
Essa nova rotina a qual estamos
forçosamente submetidos, de ficar o tempo todo dentro de casa, ter um milhão de
paranoias, achar que podemos nos contaminar ou perder pessoas que amamos,
enfim, tem relação com nossos sonhos? "Totalmente", foi a primeira
palavra que ouvi de Sidarta Ribeiro, neurocientista e maior autoridade sobre o
assunto no Brasil.
ILUSTRAÇÃO: DAPENHA
Para os mais céticos, quero abrir
aqui um parágrafo importante. Neste texto não há absolutamente nada de
charlatanismo místico e fantasioso típico de sites mequetrefes que ostentam
projeções simplórias como "sonhar com cobra significa traição". Se
você nunca ouviu falar do Sidarta Ribeiro, adianto que ele é um baita cientista
com pós-doutorado na Duke University, que se debruçou sobre muitos livros,
pesquisas científicas e laboratórios. Atualmente, ele é diretor do Instituto do
Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), diretor da SBPC
(Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e integra também a
coordenação científica da Plataforma Brasileira de Política de Drogas. Em 2019,
ele lançou o livro "O Oráculo da Noite" pela Companhia das Letras,
contextualizando a importância dos sonhos desde as civilizações mais antigas. O
Brasil (de Bolsonaro) anda tão pernicioso quando o assunto é ciência – visto
que qualquer tiozão do Zap parece ter mais autoridade pra falar sobre qualquer
coisa com propriedade do que um estudioso no assunto – que achei melhor
enfatizar a importância. Seguimos.
Nos últimos dias, passei a ter a
impressão de que estamos sonhando mais e falando mais sobre o assunto durante a
quarentena. Até então, era apenas uma suposição jornalística. Mas Sidarta me
deu duas possibilidades: "As pessoas têm mais tempo pra ficar em casa,
portanto, têm mais tempo pra dormir e pra sonhar. A segunda, e talvez mais
relevante, é porque tá todo mundo com medo de morrer".
"Esse
medo da morte está tomando proporções épicas. Então, isso tá levando as pessoas
para experiências oníricas negativas, aversivas, de pesadelos, mas também de
salvação." – Sidarta Ribeiro
Bingo. Sinto que estou mais perto
do ponto em comum nos relatos dos entrevistados: a vida. Ou, talvez, a morte.
Sidarta, então, me explicou que os sonhos são um mecanismo antigo, evoluído há
mais de 200 milhões de anos entre os mamíferos pra simular futuros possíveis
com base no passado. O problema dos mamíferos antes de nós era, basicamente,
sobreviver e procriar. A preocupação diária deles era não morrer e caçar para
comer. "Esse medo da morte está tomando proporções épicas, até porque a
Covid-19 é um fenômeno épico. Então, isso tá levando as pessoas para
experiências oníricas negativas, aversivas, de pesadelos, mas também de
salvação", disse. Ou seja: é como se estivéssemos voltando ao passado, ao
nosso modus operandi animal. Estamos lutando para sobreviver
acordados e também quando dormimos.
A palavra "salvação" me
conecta ao depoimento dos dois entrevistados: Lucas tentava salvar um amigo que
volta à vida e Ana tentava salvar a si mesma com medo de virar um zumbi.
"Estamos operando em níveis altos de adrenalina, noradrenalina, cortisol.
Está todo mundo estressado. O mundo natural é estressante", pontuou o
neurocientista.
Enquanto buscava relatos para
escrever esta matéria, uma amiga veio me contar um sonho que teve durante a
quarentena: "Sonhei que tentava pegar meu pai de santo durante o
atendimento". Questionei se, na vida real, rolava uma atração por ele.
"Não! Ele é um senhorzinho", ela respondeu.
ILUSTRAÇÃO: DAPENHA
Carolina Carvalho, 22, fotógrafa
e escritora, disse que tem vivido um loop: se não está sonhando com coisas
totalmente aleatórias e estranhas, acaba sonhando com sexo: "Desde que
começou esse período de quarentena eu tenho tido sonhos eróticos com bastante
frequência, tipo, quase todos os dias da semana". Antes do isolamento ela
já costumava ter esse tipo de sonho. "Mas não com essa frequência",
frisou.
Sidarta me respondeu que os
sonhos, no geral, refletem desejos e temores. "Isso vai lá no Freud. Os sonhos têm sentido e esses sentidos têm a
ver com desejos e anti-desejos. Quando a gente tá diante da morte, qual é o
antídoto pra morte? É a vida. Então, é totalmente natural que, quando estamos
diante de uma coisa angustiante – que é a morte –, de alguma maneira, que o
corpo e o cérebro busquem prazer, alguma coisa que afirme a vida."
Mas por que sonhamos? Se tantas
vezes sonhar é trabalhoso, fazendo a gente acordar exausto, sem a sensação do
descanso merecido. Existe algum benefício em sonhar? O especialista menciona
que a psicanáliseafirma há mais de cem anos que sim, que sonhar
faz bem. "Mas a neurociência ou a psicologia, a ciência, de forma geral,
só começou a encontrar traços dessas vantagens há uns 10 anos", falou.
Ele indica o trabalho do
psiquiatra e professor da Escola de Medicina de Harvard Robert Stickgold, que
apresenta um estudo em que pessoas jogam um game de labirinto e, quando sonham
com o jogo, demonstram uma taxa de desenvoltura 10 vezes melhor do que aquelas
que não sonham com o mesmo conteúdo. Fiquei curiosa e assisti um TED bem antigo de Stickgold, onde ele fala
sobre o tal estudo. "Imaginar futuros possíveis é algo que o cérebro faz
quando você sonha", disse o médico durante a palestra. Isso nos dá a
brecha de pensar que, quando sonhamos com algo que está ruim ou difícil na
nossa vida, pode ser que, no dia seguinte, temos chances de lidar de uma
maneira melhor com aquilo.
Ainda vai levar um bom tempo pra
todo mundo assimilar o que tem rolado com a chegada do coronavírus. Estamos
vivenciando algo histórico e doloroso – o que não deixa de ser um prato cheio
para a ciência. Logo no começo da pandemia em terras brasileiras a psiquiatra e
neurocientista Natália Mota, pós-doutoranda e pesquisadora do Instituto do
Cérebro da UFRN, começou a coletar dados de maneira remota para medir como o
conteúdo dos sonhos de voluntários saudáveis pode estar relacionado a
sofrimento mental. "A intenção é entender como a gente pode usar essas
evidências pra lidar com isso em situações futuras", me contou por
telefone. "Uma das hipóteses que estou investigando é que, durante essa
pandemia, teremos um aumento da proporção de conteúdo negativo. Outra hipótese
é se esses relatos vão ter uma similaridade semântica maior com a palavra medo,
com a palavra doença, vírus", falou.
Por ora, nem mesmo a ciência pode
responder assertivamente o que nossos sonhos querem nos dizer. Sidarta, meu
oráculo para sanar as angústias sobre sonhos alheios nos últimos dias, reforçou
algo importante que, de certa maneira, me trouxe certo conforto ao pensar que,
é, tá foda mesmo e não temos como fugir da realidade. "Quantas e quantas
pessoas não viveram guerras, epidemias, saques, tragédias naturais? A história
da humanidade, da espécie, dos mamíferos é essa", concluiu.
Por Débora Lopes; ilustrado por Dapenha
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