Entenda
decisão do TSE sobre cota do fundo eleitoral para candidaturas de negros
Regra
valerá a partir das eleições de 2022 e também será aplicada em relação à
propaganda na TV e no rádio
o
SÃO PAULO
O
TSE (Tribunal Superior Eleitoral) decidiu nesta terça-feira (25) que partidos
terão que destinar recursos do fundo eleitoral de maneira proporcional à
quantidade de candidatos negros e brancos a partir das
eleições de 2022. A corte resolveu também aplicar regra similar à propaganda eleitoral gratuita na TV e no rádio.
O
voto do presidente da corte e relator da ação, Luís Roberto Barroso, a favor
das novas regras, foi seguido pelos ministros Edson Fachin, Alexandre de
Moraes, Og Fernandes, Luís Felipe Salomão e Sérgio Banhos.
Tarcísio
Vieira de Carvalho foi o único a discordar da tese por entender que a matéria
compete ao Congresso, onde já tramita um projeto de lei com essa finalidade.
A deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG) no
plenário da Câmaras dos Deputados, em Brasília (DF) - Pedro Ladeira –
O que foi decidido pelo TSE? Por maioria, a corte determinou que,
a partir das eleições de 2022, a distribuição dos recursos do Fundo Especial de
Financiamento de Campanha, o chamado fundo eleitoral, e do tempo de propaganda
eleitoral gratuita na TV e no rádio deve ser proporcional ao total de
candidatos negros e brancos na sigla. Até lá, o tribunal fará uma resolução com
normas que deverão ser seguidas pelos partidos.
Como o caso chegou ao TSE? Em junho de 2019, a deputada federal Benedita
da Silva (PT-RJ) apresentou ao tribunal uma consulta sobre a possibilidade de
destinação de vagas e divisão proporcional do fundo eleitoral, bem como dos
demais recursos de campanha, para candidatos negros, nos moldes do que é feito
para candidaturas de mulheres.
Consultor da Educafro e representante da deputada na consulta, o advogado Irapuã Santana afirma que a ação foi motivada por uma sequência de decisões judiciais.
A
primeira é de 2015, quando o STF (Supremo Tribunal Federal) proibiu a doação de empresas para campanhas eleitorais.
Em 2017, o Congresso reagiu e criou um fundo especial para financiamento de campanha.
Já
em 2018, o Supremo decidiu que os partidos deveriam destinar o mínimo de 30% de recursos do fundo partidário para
candidaturas femininas.
Também
naquele ano, o TSE decidiu que o mesmo percentual do fundo eleitoral e dos
recursos de campanha, como tempo de propaganda de rádio e televisão, também
deveriam ser destinados para as candidatas.
“Observamos
isso e parecia ser a hora de os negros também conseguirem um avanço frente a
sub-representatividade que existe na política”, diz o advogado, acrescentando
que a consulta foi feita à corte eleitoral pela primeira vez em 2018, mas não
foi aceita por questões de ordem burocrática.
Qual
o cenário de representação de negros na política brasileira? Embora representem mais da metade da
população do país, segundo o IBGE, os negros (pardos e pretos) seguem
sub-representados nos mandatos eletivos.
Nas
eleições municipais de 2016, levantamento feito pela Folha mostrou que as candidaturas
negras para vereador somavam 48% dentre os mais de 437 mil aptos na disputa.
Entre os eleitos, esse percentual caiu para 42%. Entre os pretos, apenas 5%.
Para
o sociólogo Luiz Augusto Campos, professor do Instituto de Estudos Sociais e
Políticos da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), o financiamento e
o acesso a grandes partidos são os principais obstáculos para eleição de negros
no país.
“Os
candidatos pretos e pardos têm acesso a menos financiamento e recursos de
campanha. O financiamento envolve basicamente dinheiro, mas também um recurso
importante, que é o tempo de televisão”, diz ele, que integra a coordenação do Grupo de Estudos Multidisciplinares
da Ação Afirmativa.
Santana acrescenta que a consulta à
corte eleitoral mostra que garantir esses recursos também tem impacto no
racismo estrutural na sociedade.
“Um ponto que ficou bem evidenciado
na consulta é que, quando o negro não tem condições de concorrer, existe um
déficit democrático, porque não serão feitas políticas públicas voltadas para
reduzir as desigualdades sociais relativas a nossa população.”
O que a consulta propôs ao TSE? Eram quatro pontos. O primeiro versava sobre
a possibilidade de garantir metade do percentual dos recursos financeiros e do
tempo em rádio e TV destinados às candidaturas femininas para as mulheres
negras.
O segundo ponto, sobre a criação de
uma reserva de vagas de 30% para candidaturas negras em cada partido, assim
como foi feito para mulheres.
O terceiro tratava da distribuição
proporcional de recursos do fundo eleitoral para campanhas de candidatos
negros, num mínimo de 30%.
O quarto e último ponto buscava assegurar
a distribuição proporcional do tempo de propaganda eleitoral no rádio e TV para
candidaturas de pessoas negras, com o mínimo de 30%.
Qual a diferença entre fundo
eleitoral e fundo partidário? Criado
em 1965, o fundo partidário é usado para custear as despesas de manutenção das
siglas e pode ter uma parcela usada para financiamento das eleições.
Definido com base no Orçamento, a
divisão do fundo entre os partidos leva em consideração o resultado das
eleições para a Câmara dos Deputados e uma pequena parcela, de 5%, é
distribuida entre todos os partidos.
Já o Fundo Especial de Financiamento
de Campanha foi criado pelo Congresso em 2017, após o Supremo barrar a
contribuição de empresas para campanhas eleitorais. Os recursos são repassados
para as siglas nos anos eleitorais, numa divisão que leva em conta a proporção
de representantes na Câmara e Senado, assim como o resultado da eleição para
Câmara.
Assim como no fundo partidário, uma
pequena parcela do fundo eleitoral é dividida igualmente entre as legendas, no
caso 2%.
Qual foi o placar do julgamento no TSE? Por 6 votos a 1, os ministros concordaram com o terceiro e com o quarto ponto da consulta.
Em
relação ao primeiro ponto, de distribuição da metade dos recursos para mulheres
negras, a corte votou por uma distribuição de forma proporcional, considerando
a presença de mulheres brancas e negras.
Sobre
o segundo ponto, de estabelecer uma reserva de vagas para candidatos negros, o
entendimento foi de que essa seria uma tarefa do Congresso e não do Judiciário.
Foi esse o argumento usado pelo ministro Tarcísio Vieira de Carvalho para votar
contra todos os quesitos.
Por
4 votos a 3, o tribunal decidiu que as regras só deverão valer para 2022,
posição do ministro Og Fernandes, seguida por Luís Felipe Salomão, Sergio
Banhos e Tarcísio Vieira de Carvalho.
Foram
vencidos os votos de Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes,
que defendiam a mudança já para as eleições municipais.
Quais
foram os argumentos dos ministros? Barroso disse que a igualdade, tanto formal quanto
material, deve ser buscada não só pelo Estado, mas por toda sociedade.
“Se
o racismo no Brasil é estrutural, é necessário atuar sobre o funcionamento das normas
e instituições sociais, de modo a impedir que elas reproduzam e aprofundem a
desigualdade racial”, afirmou.
O
posicionamento foi seguido por cinco ministros. Para o advogado da consulta,
Irapuã Santana, a decisão representa uma vitória e um passo gigantesco.
"Foi
um reconhecimento importante do TSE de que existe o racismo estrutural na nossa
sociedade e também o racismo institucionalizado dentro dos partidos políticos,
que pode ser modificado a partir do momento que a distribuição de recursos
levem em consideração as garantias constitucionais de igualdade perante a
lei."
A
regra também valerá para homens negros ou apenas para mulheres? Vale também para homens. O primeiro
aspecto da consulta tratava da divisão para mulheres, mas os outros referentes
à distribuição de recursos se referem a candidaturas tanto de homens quanto de
mulheres.
Como foi o processo no caso da lei de cotas para
candidaturas femininas? A professora da FGV Direito Luciana Ramos,
pesquisadora do tema, lembra que a primeira lei de cotas para candidaturas de
mulheres foi aprovada em 1995, com um percentual de 20%. Em 1997, ano em que
foi criada a Lei das Eleições, a regra foi mantida e a cota ampliada para 30%,
para cargos proporcionais.
Entretanto, como a redação da lei dizia que os partidos
deveriam “reservar” as vagas, muitas siglas alegavam que a regra não era
cumprida pela falta de mulheres interessadas em disputar as eleições. Isso
mudou em 2009, quando o verbo foi substituído por “preencher”, e a Justiça
Eleitoral passou a entender que o cumprimento era obrigatório.
Em
2018, as decisões do STF e do TSE obrigaram os partidos a seguirem o mesmo
percentual para a distribuição de recursos. Apesar do avanço, Luciana aponta
que por ser uma decisão judicial ela pode ser alterada caso haja uma mudança no
perfil dos membros das cortes. Por isso, é necessário que o tema seja debatido
pelo Congresso.
Quais
os efeitos da aplicação desta norma para a eleição de mulheres? Passados 25 anos da primeira lei de
cotas no país, o Brasil tem apenas 15% de parlamentares mulheres no Congresso.
O país ocupa atualmente a 141ª posição no ranking mundial de igualdade no Parlamento da
Inter-Parliamentary Union (IPU), que tem mais de 190 países.
Luciana
aponta que há uma falta de compreensão dos partidos e também da sociedade sobre
a importância de garantir candidaturas representativas, com mais espaço
para mulheres, negros, indígenas e outros segmentos.
Ela
foi uma das coordenadoras de um estudo desenvolvido pela FGV sobre as eleições de 2018,
que mostrou que a desigualdade de gênero no pleito deu lugar à desigualdade
racial, com homens e mulheres negros recebendo menos recursos.
No
caso das mulheres, as brancas eram 18,1% das candidatas e ficaram com 16,2% do
dinheiro, enquanto as negras eram 12,9% e receberam 5,7%. Entre os homens, os
brancos eram 43,1% dos candidatos e receberam 61,4% da verba, enquanto os
negros eram 26% e tiveram 16,7% dos recursos.
O
que pode ser feito para que os partidos não burlem a nova regra? Um aspecto anterior à distribuição
dos recursos e que deverá ser considerado pelo TSE ao formular a resolução
sobre o tema é que a distribuição por raça e gênero são diferentes pelo país,
afirma o cientista político Carlos Machado, professor do Instituto de Ciência
Política da UnB (Universidade de Brasília) e coordenador do núcleo de pesquisa
Flora Tristán.
"É
preciso que o valor seja variável a depender do contexto eleitoral",
afirma, destacando a maior presença da população negra em estados do Nordeste. Além
disso, Machado também defende que se olhe para experiências que foram
bem-sucedidas no caso das mulheres.
Para
o advogado Irapuã Santana, o cumprimento das novas regras vai exigir ações de
fiscalização, tanto da Justiça Eleitoral quanto da sociedade e da mídia.
Via
Legislativo, Machado aponta que a discussão caminha para uma definição de cotas
para parlamentares negros, o que solucionaria boa parte dos problemas sobre a
distribuição, diz.
Santana
lembra que tramita na Câmara o projeto de lei 4.041/2020, de autoria da
deputada Benedita da Silva, que busca transformar em lei os pontos discutidos
pela consulta junto ao TSE. Para Luciana Ramos, sem a definição de um
percentual mínimo de candidaturas, as regras novas regras não terão o efeito
esperado.
Como
lidar com a questão da autodeclaração? O cientista político da UnB diz que há
pesquisas na academia que tentam entender como o dado racial é preenchido na
Justiça Eleitoral: se a declaração é feita pelo próprio candidato, pelo partido
ou pela equipe de campanha. "A gente não sabe como a classe política lida
com isso", diz Carlos Machado.
Sobre
fraudes, o advogado e consultor da Educafro, Irapuã Santana, afirma que a
experiência das cotas nas universidades mostrou que esses casos são mínimos e
sugere que sejam criadas comissões de verificação pelos partidos para evitar
que elas ocorram.
Machado
diz que não acredita que seja possível estabelecer uma comissão no âmbito na
Justiça Eleitoral, por causa dos atritos entre Judiciário e Legislativo. Ele
afirma que a experiência com as cotas mostra que uma pessoa parda ser entendida
como branca ou negra é algo bem circunstancial, mas que o caso de pessoas
brancas que se declaram negras é mais complicado.
A
partir das novas regras, ele afirma que há risco de que essas pessoas mudem a
declaração para ter mais recursos e que é preciso que a sociedade e a imprensa
estejam atentas, ponto para o qual a professora Luciana Ramos, da FGV Direito,
também chama atenção.
"Os
partidos que não quiserem incluir pessoas negras vão usar todos os subterfúgios
possíveis e esse é certamente é um deles. Cabe ao TSE ficar ainda mais
atento", afirma a pesquisadora.
Se
o partido lançar apenas 1% de negros, ele só precisará destinar 1% do fundo
para eles? Ou seja, sem uma regra mais dura via Congresso para cota de
candidatos, a regra do TSE pode morrer sozinha? A professora da FGV Direito, Luciana
Ramos, aponta esse como um problema da decisão do TSE, que não estabeleceu
cotas para candidaturas de negros, deixando isso a cargo dos partidos.
"Só
a decisão sobre o financiamento, tomada isoladamente, tende a ser amplamente
descumprida", diz, citando o caso das mulheres como exemplo.
Outros
especialistas discordam. O advogado da consulta ao TSE, Irapuã Santana, diz que
partidos poderiam ser acusados de racismo e que há um custo político muito
alto.
A
expectativa, afirma ele, é que a regra sugerida pelo ministro Alexandre de
Moraes no julgamento, de definição de um percentual mínimo para garantir que
não ocorram retrocessos, esteja na resolução a ser formulada pela corte para
2022, ano em que ele deve presidir o tribunal.
Machado
aponta que apenas o Novo teve um número menor que 1% de candidatos negros nas
últimas eleições e que hoje as legendas estão mais atentas para essa questão.
Outro
ponto destacado pelo cientista político da UnB é que o fim das coligações para
eleições proporcionais, que passam a valer a partir deste ano, também faz com
que os partidos busquem candidatos com perfis mais diversos para ampliar a
votação.
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