25 de Novembro de 2017, 7h00
O editor de arte Helton
Gomes, 36, cresceu na periferia de São Paulo, perdeu a mãe e o irmão ainda
criança e viu amigos se envolverem com o crime. Começou a trabalhar aos 14
anos, terminou a faculdade e arrumou um bom emprego. Hoje é o responsável pela
diagramação da revista de uma das maiores companhias aéreas do país, mora
num bairro de classe média, gosta de camisas floridas estilosas e pilota
uma motocicleta Vulcan 900, cor-de-laranja metalizada.
Helton é casado com uma mulher
branca, sua “parceira na luta diária contra o preconceito”, e os dois têm uma
filha, também branca, de um ano e meio, e outro encomendado, na barriga
da mãe. “Essa reação de espanto é muito comum nas pessoas. De olhar pra minha
filha, depois pra mim, depois pra ela de novo, depois pra mim… Fico triste pra
cacete, mas acabei criando um bloqueio”, conta.
Num país que insiste em negar o
racismo, ele fala sobre as várias formas que esse fantasma onipresente assume
em sua vida:
“Demorei pra pensar sobre racismo
porque, em casa, meu pai nunca se aceitou como negro, então isso não era
assunto. Além disso, eu morava em Mauá – uma cidade dormitório, na periferia de
São Paulo – e lá tem gente de toda a cor. Então só comecei a pensar mais sobre
isso na época da faculdade, quando entrei na capoeira. Durante as rodas, meu
mestre fazia leituras e falava da importância e da força da cultura africana.
Nessa época, cheguei a comentar
com meu pai, numa brincadeira ou coisa assim, que ele era negão que nem eu, mas
ele não aceitou. Disse que não tinha nada de negão ali. Depois disso, por algum
tempo, imaginei que ele realmente não quisesse ser negro. Hoje já acho que
talvez aquilo tivesse a ver com o fato de ele ter vivido numa época em que as
coisas eram ainda piores. Que, no fim, foi o jeito de esconder esse passado ou
de fugir dessa luta. Ou talvez só esteja cansado mesmo.
Por tudo isso, eu entendo que meu pai não queira falar sobre racismo,
não queira assumir que somos negros.
Mas acho também que essa vergonha
do passado não é só dele. Eu só sei da minha família até meu avô e a minha avó,
por exemplo. Dos bisavós, sei só o primeiro nome. Porque, em algum momento,
começaram a pegar sobrenomes de outros ramos da família. Acho que isso também
tem a ver com tudo que aconteceu nesse passado, porque minha bisavó devia ser
escrava. Então talvez seja vergonha de ter um escravo na família. Por tudo
isso, eu entendo que meu pai não queira falar sobre racismo, não queira assumir
que somos negros.
Estevão Ribeiro
O que às vezes é meio absurdo.
Lembro de quando tomei meu primeiro enquadro. Tinha uns 14 anos e voltei pra
casa achando que ia apanhar. Afinal, para mim, a polícia só ia te parar se você
estivesse fazendo alguma coisa errada, e meu pai não ia acreditar que eu estava
de boa, indo na papelaria pra fazer uma fantasia do Michael Jackson.
Mas quando contei, me segurando
pra não chorar, ele riu pra cacete. Depois falou que iam me parar outras vezes.
Mas nunca falou que iam me parar pra cacete porque eu era negro. Falou
como se fosse normal. E que eu não podia nunca correr. Se eu visse a polícia,
tinha de ficar parado. Se estivesse jogando bola e passasse a polícia, tinha de
parar de correr. Então acho que isso de ele não dizer que é negro tem a ver com
isso também. Com o peso de falar para um filho que ele tem de parar de jogar
bola quando vê a polícia.
Quando eu era adolescente, eu
andava de boné e calça big, não tava nem aí, então era muito parado. E até
entendo que a polícia estava fazendo o trabalho dela, mas, com o tempo, você
começa a se perguntar: por que ninguém está revistando o moleque do outro lado
da rua, que tem a mesma cara de bobo que eu, mas não é negro?
De repente eu olhei pra trás e vi a viatura que parecia um tigre atrás
da presa.
Essa diferença na abordagem ficou
mais clara pra mim depois de um enquadro que tomei na época da faculdade. Eu
estava de carona com duas amigas brancas, quando cruzamos uma Blazer da PM. A
gente continuou conversando normalmente: eu, no lugar do meio do banco
traseiro; as duas, na frente.
De repente eu olhei pra trás e vi
a viatura que parecia um tigre atrás da presa. Até achei que o cara ia bater na
gente, mas ele emparelhou, colocou meio corpo pra fora e gritou: “Para, para,
para!”. Minha amiga obedeceu, o PM mandou abaixar o vidro e começou a fazer uma
série de perguntas: onde a gente estava indo, de quem era o carro, qual era a
placa.
Depois que ela respondeu tudo,
ele perguntou: ‘Tá, e quem é esse cara aí atrás?’. Só aí eu comecei a perceber
que ele tinha parado a gente só por minha causa, não pelo carro ou qualquer
outra coisa. Isso ficou ainda mais claro logo em seguida, porque o policial que
estava no banco de trás da viatura tinha um farolete apontado pra mim o tempo
inteiro. Em nenhum momento ele tirou de mim pra revistar o resto do carro. Aí,
quando eu me virei pra ver por que ele não estava mexendo, percebi o brilho do
cano da arma apontado pra mim.
E, de novo, eu entendo. Um cara
no banco de trás, com duas mulheres, de noite, numa rua da periferia, levanta
suspeita. Mas e se eu fosse como você? E se eu fosse branco? Será que eles
iriam parar? E se fossem duas meninas negras na frente? Tenho certeza que ele
não ia deixar a gente ir embora do jeito que fez. Que ia mandar todo mundo
descer do carro pra checar os antecedentes. Porque, pra quem é negro na
periferia não tem essa de mulher ou homem. Todo mundo é suspeito igual.
Depois que ele liberou a gente,
minha amiga falou pra mim que aquilo tinha sido muito truculento, que não tinha
sido legal. Eu até argumentei que eles estavam fazendo o trabalho deles, mas
ela repetiu que não, que não tinha sido legal. Ela, branca, falando isso pra
mim (risos).
“Vai, vai, vai, neguinho, encosta aí, caralho”.
Hoje as coisas mudaram um pouco.
Eu levo bem menos enquadro, e quando levo, são menos truculentos. Não porque a
polícia mudou ou porque o racismo diminuiu, mas porque eu circulo em outros
lugares e de outra maneira.
Quando meu salário ficou um pouco
mais razoável, passei a me vestir melhor e reparei que, com isso, andava mais
tranquilo na rua. Se sou parado, também já converso de outro jeito, não me
refiro aos policiais como senhor, por exemplo. A não ser que o cara mande, mas
mesmo assim vai ser um “senhor” diferente, menos submisso.
Além disso, eu circulo menos pela
periferia, o que muda tudo. Na periferia é “vai, vai, vai, neguinho, encosta
aí, caralho”. Na Zona Oeste, quando eu fui parado numa blitz da Lei Seca, o
policial me chamou de senhor e pediu para eu soprar o bafômetro ‘por favor’.
Estevão Ribeiro
Agora, eu continuo andando sempre
com tudo certo e nunca saio sem documento de casa. Outro dia fui num caraoquê,
e os caras pediam RG na entrada. Aí peguei a carteira e percebi que estava sem.
Cara, eu fiquei desesperado. Os meus amigos falavam: ‘Calma, você vai conseguir
entrar’. E eu respondia: ‘Cara, olha a minha cor. Você acha mesmo que posso
andar tranquilo pela rua sem documentos?’
Mas, enfim. Eu gosto de me vestir
do jeito que eu me visto, gosto de me arrumar, me sinto bem, mas é também um
jeito de tomar menos enquadro, de as pessoas não sentirem medo de mim na rua.
Eu gosto de boné aba reta, por exemplo. Mas, se eu tiver de vir a pé, à noite,
eu não vou usar porque tenho medo de tomar enquadro e não gosto de ver todo
mundo mudar de calçada quando me vê na esquina.
Isso ainda é comum. Outro dia
mesmo, do lado de casa, na frente do batalhão da PM, uma senhora me olhou, se
assustou e atravessou a rua. Aí eu fico pensando, quem, em sã consciência, vai
assaltar alguém em frente a um batalhão da polícia (risos)?
“Senhora, pode ficar tranquila, eu não vou te assaltar. Estou indo pro
meu trabalho, sou designer.”
Nessas horas, a minha vontade é
atravessar antes e ficar olhando como se estivesse com medo. Aí, quando ela
vier me perguntar por que eu atravessei, eu vou explicar que vi uma senhora
branca na rua e fiquei com medo. Às vezes, eu faço umas coisas assim. Quando
alguém começa a me olhar, a segurar a bolsa, tento andar mais rápido, segurar
minha mochila como se estivesse com medo. Só que as pessoas não entendem
e acabam ficando com mais medo ainda.
Quando esse tipo de coisa
acontece, sinto uma mistura de coisas. Tristeza, raiva, vontade de falar:
‘Senhora, pode ficar tranquila, eu não vou te assaltar. Estou indo pro meu
trabalho, sou designer. Olha aqui a revista que eu faço, você pode levar pra
casa e, quando pegar o próximo avião, lembra de mim. Não precisa lembrar de mim
só porque achou que eu ia roubar sua bolsa’.
Eu sei que muita gente vê isso
como mania de perseguição. E eu vejo mesmo o mundo por essa ótica, estou sempre
pensando se aquelas coisas aconteceram porque eu sou negro. Uma vez uma mulher
atravessou a rua, eu achei que era por minha causa, e ela entrou no carro
estacionado do outro lado. Mas, em geral, a gente percebe a intenção.
Isso quando
o racismo não é completamente escancarado.
Um exemplo desse preconceito
escancarado. Eu sempre fui um cara bobo nos relacionamentos, sempre quis fazer
tudo certo, conhecer a família etc. Mas tinha uma namorada que não queria me
apresentar os pais dela de jeito nenhum. Eu insisti, insisti, e quando eles
finalmente me receberam para um almoço foi uma catástrofe. Na hora, eles já
ficaram dando uma alfinetadas, dizendo que iam muito à igreja, que não gostavam
de macumba, mas eu sou meio lento pra essas coisas e não entendi por que
ficavam falando de macumba e de igreja.
Logo depois desse encontro, minha
namorada se afastou e, passados alguns dias, terminou comigo, por telefone. A
gente ficou um fim de semana brigados, eu perguntando o que estava acontecendo,
ela fugindo da resposta. Até que finalmente caiu a ficha e eu perguntei se tudo
aquilo era por eu ser negro. Ela ficou em silêncio, eu insisti mais, e ela
finalmente falou: ‘É… Minha mãe disse que você é macumbeiro, que é bandido e
criminoso’. A gente continuou junto, mas a partir daí foi um tormento de
ligações, de recados na caixa de mensagem, do pai dela me mandando e-mails com
ameaças.
Hoje, felizmente, isso ficou para
trás. A família da minha esposa me aceita e é super carinhosa comigo. Mas o
problema continua em outros lugares. Porque eu sou um pai negro de filha
branca. E quando ando com ela na rua, vou à padaria, sinto o olhar das pessoas
de um jeito que não é legal. Quando a minha esposa está junto, todo mundo chega
pra brincar com minha filha, fazer gracinhas, falar como ela é fofa.
Essa reação de espanto é muito comum nas pessoas. De olhar pra minha
filha, depois pra mim, depois pra ela de novo, depois pra mim…
Já quando estou sozinho com ela,
ninguém fala, ninguém se aproxima. Sendo que ela continua fofa do mesmo jeito
(risos). Lembro de uma vez, quando fui na padaria com ela e com o Jobim, que,
por sinal, é um cachorro preto (risos). Antes de entrar, eu travei o carrinho e
fui amarrar o cachorro. Enquanto isso, um casal mais idoso saiu e ficou brincando
com minha filha, perguntando ‘Onde está sua mãe?’. Eles já tinham se afastado
um pouco quando eu acabei de amarrar o Jobim e peguei o carrinho com a minha
filha. Nessa hora, o casal, que estava pegando o carro, entrou em choque. Pra
mim, ficou claro que eles estavam pensando se chamavam ou não a polícia.
Essa reação de espanto é muito
comum nas pessoas. De olhar pra minha filha, depois pra mim, depois pra ela de
novo, depois pra mim… Fico triste pra cacete, mas acabei criando um bloqueio.
Presto atenção nela, na nossa relação, nas coisas, no meu celular, mas não olho
mais as pessoas em volta.
Isso ajuda, mas não resolve. Eu
tenho medo de ir sozinho ao shopping com a minha filha, por exemplo. Porque
toda a criança que sai sozinha com o pai, em algum momento, vai começar a
gritar, chamando ‘mamãe’. E eu fico pensando comigo: imagina eu, negro, em um
shopping, com uma menina branca chorando e gritando ‘mamãe!’. Ah, leva o
documento. Tudo bem, mas e até mostrar o documento?
E eu só devo satisfações se a
polícia aparecer. Eu não vou mostrar documento ou falar o nome da minha filha
pra um estranho. Não tenho obrigação. E aí… Meu… Tem um monte de gente que não
cometeu crime nenhum e foi linchado até a morte. Tem um vídeo de um professor de história negro que teve
de dar uma aula pra não ser linchado, porque achavam que ele tinha roubado um
carro.
Por outro lado, eu não vou de
deixar de fazer as coisas com ela por causa disso. Então eu tenho um combinado
com minha esposa. Quando eu saio, o celular dela tem de estar do lado, na
orelha. Porque, se der uma merda, ela vai ser a mãe branca que vai me salvar.
O problema é que a coisa toda vai
além da violência física. Tem o assédio, o trauma que isso pode causar na minha
filha. Porque hoje eu não quero que ela saiba que isso existe. Eu sei que, cedo
ou tarde, um amiguinho da escola vai falar: “Seu pai é preto, por que você é branca?”.
Mas quero evitar o máximo de trauma na vida dela.
E o mais irônico é que, por tudo
isso, eu às vezes fico meio aliviado por ela ser branca. Eu não quero que ela
passe tudo o que eu passei, que eu passo, que eu vejo outros negros passando.
Mas é um alívio que me deixa muito mal. Agora, a gente está esperando um
segundo filho. Eu queria muito que ele fosse neguinho, mas, ao mesmo tempo,
fico pensando nos perrengues que ele vai passar e, sinceramente, não quero isso
pra ele.”
Em depoimento a Tomás Chiaverini.
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