Quando havia índios em Lagoa Santa
DNA
antigo revela colonização humana rápida na América do Sul por volta de 14 mil anos
atrás
O
dentista Rodrigo de Oliveira trabalha no sítio arqueológico da Lapa do Santo
(MG)
André
Strauss / USP
Maria Guimarães 17:048 nov 2018
Vivendo há cerca de 11 mil anos
em alguma caverna da atual Lagoa Santa, Minas Gerais, a moça que na posteridade
viria a ser conhecida como Luzia não podia imaginar que no século XXI sua
aparência e ascendência seriam mistérios perseguidos por especialistas. O
sequenciamento do material genético de seus conterrâneos e
contemporâneos – não dela – agora sugere que o rosto de lábios
grossos e nariz alargado
com que entrou para a narrativa sobre a ocupação humana da América
provavelmente não representa a realidade. “Luzia era uma índia, não tinha
ancestralidade africana”, afirma a geneticista Tábita Hünemeier, do Instituto
de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). “Os dados genéticos
mostram que a ancestralidade do povo de Lagoa Santa é 100% ameríndia, com a
possível exceção de um indivíduo cujo genoma apresenta uma taxa de 3% com
origem em outra população”, completa o arqueólogo André Strauss, do Museu de
Arqueologia e Etnologia da USP, sobre o período por volta de 10 mil anos atrás.
Ele e Hünemeier são coautores de um estudo publicado na revista Cell, e
ele participa de outro na Science, ambos publicados em 8 de novembro e
que escrevem uma nova página na descrição da colonização da América. O povo de
Lagoa Santa tem muito a contar.
Essas conclusões são um sacolejo na arqueologia
brasileira, já que o povo de Luzia foi, há cerca de 30 anos, a base para a
proposta feita pelo bioantropólogo Walter Neves, recentemente aposentado pelo
IB-USP, sobre o povoamento da América (ver Pesquisa FAPESP nº
195).
Observando, a partir de medições, que os crânios coletados na região eram
diferentes dos encontrados em outros lugares, ele propôs que uma primeira leva
de migrantes com características físicas das populações atuais da Austrália e
da África deu origem àquela população, sem deixar descendentes. Baseado nessa
interpretação, nos anos 1990 o especialista forense britânico Richard Neave, da
Universidade de Manchester, no Reino Unido, reconstruiu o que seria o rosto de
Luzia. Os nativos americanos (ou ameríndios) que depois se tornaram típicos do
continente descenderiam de uma onda migratória posterior, com aparência típica
do leste asiático: olhos puxados, cabelos lisos e escuros. De acordo com o
antropólogo brasileiro Mark Hubbe, da Universidade Estadual de Ohio, nos
Estados Unidos, e um dos autores do artigo da Cell, essa visão não é
necessariamente desbancada pelos novos estudos. “A morfologia de Lagoa Santa é
generalizada, similar a grupos do final do Pleistoceno, e se mantém em
populações de origem africana”, afirma. “Mesmo que o povoamento da América do
Norte tenha resultado de uma única expansão demográfica, o modelo do Walter se
sustenta na América do Sul, que passou por um processo mais complexo.”
Mas essa complexidade tem
nuances, agora reveladas pelo genoma completo de representantes desses povos a
partir de DNA antigo, o que permite reconstruir sua história com mais detalhe.
Desde 2012, durante o doutorado no Instituto Max Planck, na Alemanha, Strauss
deu início ao projeto de sequenciar o DNA de ossadas encontradas na Lapa do
Santo, uma caverna da região de Lagoa Santa (ver Pesquisa FAPESP nº
247). O
trabalho foi feito pelo bioquímico alemão Johannes Krause, que também assina o
trabalho da Cell e atualmente dirige o Instituto Max Planck de Ciência
da História Humana. “No começo não tínhamos muito sucesso”, lembra Strauss. Até
que outros pesquisadores demonstraram que o osso petroso, na região do ouvido,
era uma fonte melhor de DNA. O problema é a necessidade de retirar esse osso
denso, um procedimento destrutivo dificilmente permitido em uma peça importante
como o crânio de Luzia, que o grupo de Strauss minimiza gerando imagens
tridimensionais de alta definição. O trabalho inclui DNA antigo de 49
indivíduos de 16 localidades na América Central e do Sul (sete da Lapa do Santo
e oito de mais três localidades no Brasil) e propõe um sacolejo no modelo de
Neves.
Em 2015, o estatístico e bioinformata
norte-americano David Reich, da Universidade Harvard, procurou os geneticistas
Francisco Salzano (1928-2018) e Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), porque tinha feito uma análise exploratória com
DNA dos povos amazônicos Suruí e Karitiana a partir de DNA de células
cultivadas in vitro, mas faltava conhecimento das populações indígenas para
interpretar os dados. “As duas populações são muito próximas, com integrantes
muito aparentados”, explica Hünemeier. Uma amostragem mais bem distribuída, à
época, indicou uma contribuição ao povoamento sul-americano de povos
originários da Austrália e da Melanésia, na Oceania, chegando pela Beríngia,
que ligava a Sibéria ao Alasca. Uma leva posterior, mestiça entre nativos da
Oceania e da Ásia, ficou conhecida como população Y (ver Pesquisa FAPESP nº
234). Sua
existência não se sustenta, porém, no estudo deste mês na Cell –
coordenado por Reich.
Localização do osso petroso, retirado para extração
de DNA (flechas azuis) e tomografia indicando densidade do osso (parte
mais densa em vermelho)André Strauss / USP
Ele indica que o povo de Luzia
era semelhante à cultura Clóvis, que teve início na atual América do Norte e no
estudo representada por ossos de 12.800 anos encontrados no sítio arqueológico
Anzick, nos Estados Unidos. Essa ancestralidade também aparece nos crânios mais
antigos examinados em Belize, na América Central, e Los Rieles, no Chile. De 9
mil anos para cá, o quadro muda. “A linhagem foi completamente substituída por
uma leva migratória que se espalhou rapidamente, o ramo de Luzia foi
desaparecendo”, diz Hünemeier.
A semelhança é genética, mas não
é possível estimar a aparência dos representantes de Clóvis. “Existe apenas a
calota craniana do homem de Anzick, um indivíduo juvenil”, afirma a arqueóloga
Mercedes Okumura, do IB-USP, que não participou dos estudos e é a atual
coordenadora do laboratório montado por Walter Neves. Faltam mais crânios e
esqueletos para se ter uma ideia sólida de como era a população Clóvis, mas
para Lagoa Santa a especialista britânica em reconstrução forense Caroline
Wilkinson, da Universidade John Moores de Liverpool, na Inglaterra, propôs – em
parceria com Strauss – uma nova fisionomia, a partir do crânio digitalizado e
com base na ancestralidade não austromelanésia.
Processo de reconstrução facial a
partir de crânio encontrado na Lapa do Santo, de homem que viveu há cerca de 9
mil anos (arte 3D André Strauss, a partir de reconstrução por Caroline
Wilkinson)
Uma história bastante parecida da
colonização da América do Sul está descrita no artigo da Science,
coordenado pelo geneticista Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague. A
partir de DNA extraído de 15 esqueletos encontrados em localidades que vão do Alasca
à Patagônia, seis deles com mais de 10 mil anos de idade, ficou claro que assim
que conseguiram transpor a área glacial na América do Norte, antes de 14 mil
anos atrás, as populações humanas se espalharam rapidamente pela América do
Sul. Essa rapidez fica evidente graças ao DNA de cinco ossadas de Lagoa Santa
coletadas no século XIX pelo dinamarquês Peter Lund na gruta do Sumidouro e
mantidas no Museu de História Natural da Dinamarca, a mesma coleção que Neves
examinou e que inspirou seu modelo. O genoma desses esqueletos é muito
semelhante ao do homem de Spirit Cave, no sudoeste dos Estados Unidos,
contemporâneo da amostra mais antiga de Lagoa Santa.
“Os dois artigos concordam sobre
a expansão rápida e a percepção de uma segunda onda migratória para a América
do Sul”, resume o geneticista mexicano Víctor Moreno-Mayar, em estágio de
pós-doutorado no Centro de GeoGenética, em Copenhague, e primeiro autor do
estudo. “Uma população estabelecida na Mesoamérica, provavelmente no México,
também contribuiu por meio de movimentação tanto para o sul quanto para o
norte, por volta de 8 mil anos atrás”, completa, destacando ser um resultado
diferente do que foi visto pelo outro grupo. Ele explica que o modelo clássico
descreve um movimento de norte para sul, em que as pessoas colonizavam um local
e ali ficavam. A história parece ter sido mais movimentada. “Essa ocupação
provavelmente se deu por uma rota costeira no Pacífico que teria dado origem
tanto ao povo que ocupou Monte Verde [sítio arqueológico no Chile] como também
ao povo de Lagoa Santa”, diz o geneticista Fabrício Santos, da Universidade
Federal de Minas Gerais, coautor do estudo. “Eles estavam ocupando um
continente sem competidores humanos.”
Reconstrução facial de Luzia presumia
ancestralidade africanaRichard Neave/Universidade de Manchester
Santos destaca a importância
histórica de se analisar o material de Lund. “Hoje sabemos que todos esses
povos antigos, antes de 8 mil anos nas Américas, apresentavam uma morfologia
indiferenciada, sem muitos traços mongólicos”, diz. Mesmo assim, todos os
paleoamericanos analisados – termo usado para os habitantes mais antigos do
continente, com aparência distinta dos subsequentes – são geneticamente mais
parecidos com populações indígenas atuais do que com qualquer outro grupo
humano atual ou do passado. Em um dos indivíduos da gruta do Sumidouro o DNA
revelou trechos similares aos encontrados em populações da Austrália e da Ásia,
aquela população Y descrita por Reich em 2015. Ainda não está claro o que o achado
significa, já que nada semelhante foi detectado nas amostras norte-americanas,
por onde a migração teria passado. Nem mesmo em Spirit Cave. “De qualquer
forma, inexiste qualquer relação entre a morfologia craniana do povo de Luzia e
esse sinal da população Y”, afirma Strauss.
Um aspecto importante nos dois
estudos foi reunir estatística, genética, arqueologia e bioantropologia – áreas
tradicionalmente dissonantes. Mercedes Okumura reforça a importância do
trabalho interdisciplinar: “As análises genômicas do DNA antigo abrem uma
janela para algo que há 20 anos era ficção científica, mas os resultados
precisam ser interpretados à luz do que já existe, como estudos em arqueologia
e morfologia”. É normal, para ela, que fontes diferentes de informação tragam pistas
discordantes. O desafio é descobrir como as peças se encaixam para elucidar a
história dos povos como um todo.
Projetos
1. Origens e microevolução do homem na América: uma abordagem paleoantropológica (III) (no 04/01321-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Walter Alves Neves (USP); Investimento R$ 2.032.925,83.
2. Investigações arqueológicas e geofísicas dos sambaquis fluviais do Vale do Ribeira de Iguape, estado de São Paulo (no 99/12684-2); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Levy Figuti (USP); Investimento R$ 339.681,66.
3. Sambaquis e paisagem: modelando a inter-relação entre processos formativos culturais e naturais no litoral sul de Santa Catarina (no 04/11038-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Paulo Antônio Dantas de Blasis (USP); Investimento R$ 1.341.927,19.
4. Diversidade genômica dos nativos americanos (no 15/26875-9); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisadora responsável Tábita Hünemeier (USP); Investimento R$ 582.984,34.
1. Origens e microevolução do homem na América: uma abordagem paleoantropológica (III) (no 04/01321-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Walter Alves Neves (USP); Investimento R$ 2.032.925,83.
2. Investigações arqueológicas e geofísicas dos sambaquis fluviais do Vale do Ribeira de Iguape, estado de São Paulo (no 99/12684-2); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Levy Figuti (USP); Investimento R$ 339.681,66.
3. Sambaquis e paisagem: modelando a inter-relação entre processos formativos culturais e naturais no litoral sul de Santa Catarina (no 04/11038-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Paulo Antônio Dantas de Blasis (USP); Investimento R$ 1.341.927,19.
4. Diversidade genômica dos nativos americanos (no 15/26875-9); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisadora responsável Tábita Hünemeier (USP); Investimento R$ 582.984,34.
Artigos
científicos
POSTH, C. et al. Reconstructing the deep population history of Central and South America. Cell. On-line. 8 nov. 2018.
MORENO-MAYAR, J. V. et al. Early human dispersals within the Americas. Science. On-line. 8 nov. 2018.
POSTH, C. et al. Reconstructing the deep population history of Central and South America. Cell. On-line. 8 nov. 2018.
MORENO-MAYAR, J. V. et al. Early human dispersals within the Americas. Science. On-line. 8 nov. 2018.
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